Ampla exposição na mídia apresenta série de ocupações de terra como sinais de “convulsão social”. Ausente da cobertura da imprensa, violência no campo bateu recorde no ano passado e vitimou 73 pessoas.
Maurício Hashizume 18/04/2004
Brasília – Com oito anos transcorridos desde o massacre de Eldorado de Carajás no fatídico dia 17 de abril, quando 19 camponeses e camponesas sem terra foram assassinados por policiais militares no Pará, a impressão que se tem é que o meio rural vive uma convulsão por causa da série de ocupações organizadas principalmente pelo Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST).
Essa percepção, porém, não se confirma nos dados preliminares da Comissão Pastoral da Terra (CPT) divulgados na última sexta-feira (16). A entidade ligada à Conferência Nacional de Bispos do Brasil (CNBB) registrou, do início do ano até 14 de abril, índices menores de violência do que aqueles que foram computados no mesmo período em 2003. A queda no número de mortes por conflito de terra foi, por exemplo, de 65% – 23 pessoas assassinadas até meados de abril de 2003 frente aos 8 casos deste ano.
Os números apresentados no relatório anual da CPT sobre os conflitos no campo revelam, no entanto, que 2003 foi o ano no qual ocorreram mais conflitos na terra desde que o estudo começou a ser produzido, há 18 anos. Foram 73 assassinatos, 64 tentativas de assassinatos, 14 mortes em conseqüência, 266 ameaças de morte, 16 casos de tortura, 405 agressões físicas, 380 prisões e 48 registros de feridos em um total de 1.690 conflitos que atingiram diretamente 1.190.578 pessoas. Até em termos de extensão territorial, os conflitos em 2003 foram maiores que anos anteriores e alcançou 3.831.405 hectares.
O que se intensificou em 2004 foram as ocupações. Até 14 de abril deste ano, foram realizadas 99 ocupações que envolveram 19.419 famílias em todo o Brasil. Em 2003, durante o mesmo período, foram 96 ocupações levadas a cabo por 14.045 famílias.
“Este caderno [relatório “Conflitos no campo – Brasil 2003″] é a voz dos que não tem voz”, salienta dom Tomás Balduíno, presidente da CPT. As vítimas dos conflitos agrários registrados ano passado, conclui ele, não foram vítimas só naquele momento. “São os excluídos desde sempre.”
A discrepância do espaço de divulgação dado pelos principais meios de comunicação do país em momentos diferentes também mereceu algumas observações do professor Carlos Walter Porto Gonçalves, do Laboratório de Estudos de Movimentos Sociais e Territorialidades (Lemto) da Universidade Federal Fluminense (UFF), que colaborou na elaboração do relatório da CPT. “Isso me lembra muito aquela histórica de que em política o que importa não é o fato, mas é a versão. Nós tivemos 73 assassinatos no campo em 2003, que remete ao final dos anos 80, época da enorme violência no campo, e isso não repercutiu na imprensa”.
Para Gonçalves, a questão agrária é extremamente sensível na sociedade brasileira. Quando, também no ano passado, o presidente Lula colocou o boné do MST, recorda, “a imprensa foi em cima e o presidente teve que colocar vários outros bonés para diluir aquela imagem”. “Isso é indicativo de como a questão agrária atravessa a estrutura de poder no Brasil e a exposição na mídia segue o critério da conveniência.”
“A imprensa faz coro como se fosse a [“guerra” pelo comando do tráfico de drogas da favela da] Rocinha, mas as ocupações fazem parte de um movimento pacífico. A violência, como mostra o caderno, vem do latifúndio”, emenda dom Tomás Balduíno.
Por seu turno, João Paulo Rodrigues, da coordenação nacional do MST, esclarece que as ocupações não são contra o governo. “Esperamos um salto de qualidade do governo em relação à reforma agrária. Não se trata de termos ou não uma boa relação com eles. Para nós, o governo Lula é o melhor que já tivemos na história. O que nós queremos mostrar é que falta o enfrentamento ao latifúndio improdutivo. E o governo deverá fazer esse enfrentamento se quiser cumprir as metas [do Plano Nacional de Reforna Agrária (PNRA), que prevê o assentamento de 47 mil famílias neste primeiro semestre, 115 mil em 2004 e 400 mil até 2007, quando se encerra a gestão do presidente Lula].”
Os números do relatório da CPT, avalia Rodrigues, são mais uma evidência de que “não vem sendo feita a reforma agrária no Brasil”. Segundo ele, o número de ocupações deve diminuir nas próximas semanas em virtude da mobilização para a organização de protestos para o Dia do Trabalhador, em 1o de maio.
Nesse contexto, o professor da UFF chama atenção para um outro fato. “As pessoas parecem esquecer que o dia 17 de abril, que relembra o massacre de Eldorado de Carajás, é o Dia Nacional da Luta pela Reforma Agrária, data oficial por decreto assinado pelo ex-presidente Fernando Henrique Cardoso”. A data se tornou oficial em junho de 2002, por meio do Projeto de Lei (10.469) da ex-senadora e atual ministra do Meio Ambiente Marina Silva e assinado pelo então presidente FHC e pelo ex-ministro do Desenvolvimento Agrário, José Abrão.
Maratona de homenagens
O Dia Nacional da Luta pela Reforma Agrária foi comemorado, na última sexta-feira (16), com duas sessões solenes (uma na Assembléia Legislativa do Distrito Federal e outra na Câmara dos Deputados) e uma missa (na famosa Catedral Metropolitana) na capital federal.
No Congresso Nacional, cerca de 250 camponeses do MST e de outras entidades como a própria CPT, Confederação Nacional dos Trabalhadores em Agricultura (Contag), Movimento de Pequenos Agricultores (MPA), Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB) e Movimento de Mulheres Camponesas (MMC) ocuparam o Plenário, assistiram a um produção em vídeo com imagens do massacre de Eldorado de Carajás e ouviramos discursos dos deputados federais Wasny de Roure (PT-DF), autor do requerimento da sessão solene, Adão Pretto (PT-RS), Alceste Almeida (PMDB-RR) e Inaldo Leitão (PL-PB).
Na entrada do Plenário, cada um dos camponeses e camponesas receberam um presente especial do deputado federal Nilson Mourão (PT-AC): uma rosa branca, adornada com um bilhete trazendo o “Grito da Terra e do Céu” (Vamos, avante, que só a luta transforma o tempo e faz história e humaniza o mundo com novos sonhos e utopias criadoras) em homenagem a cada uma das 19 vítimas do massacre de Eldorado de Carajás.
Leia também: Violência teve explosão agrária no Centro-Oeste em 2003
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