Agricultores que plantaram soja convencional sofrem contaminações em suas lavouras e são obrigados a pagar royalties a Monsanto. Greenpeace diz que falta de transparência e rapidez na liberação de transgênicos criaram pesadelo para os produtores.
Porto Alegre – As sementes de soja estão passando por um problema similar ao que afetava a eventual mulher de um poderoso imperador da Antigüidade. “À mulher de César, não basta ser honesta, ela precisa parecer honesta”, diz um dito conhecido. No caso das sementes de soja, não basta a elas serem convencionais; elas precisam parecer convencionais, ou melhor, aparecer como tais, ou mais exatamente ainda, provar que o são. A comparação pode soar estranha, mas certamente é menos estranha do que a situação que está sendo vivida pelos agricultores que optaram pelo plantio de sementes de soja não-transgênica no Rio Grande do Sul. Essa história foi contada essa semana, em forma de denúncia, pelo Greenpeace.
A entidade entregou terça-feira (20), ao Ministério Público do RS e à Assembléia Legislativa, um dossiê com denúncias de contaminação das lavouras de soja convencional e orgânica no Estado pelo cultivo de produtos geneticamente modificados. Ao entregar o documento, o Greenpeace pediu proteção para os agricultores que plantam soja convencional e a garantia do direito de cultivar soja não-transgênica sem que o produtor tenha que arcar com custos extras em função da contaminação.
Dos cerca de 83 mil agricultores que cultivaram soja transgênica no Brasil na safra 2003/2004, mais de 81 mil estão no Rio Grande do Sul. A entidade considera que a falta de transparência e a rapidez com que se deu a liberação da soja transgênica no país “criaram um pesadelo para os produtores de soja não-transgênica”.
Breve história sobre a liberação
O documento entregue pelo Greenpeace às autoridades gaúchas faz uma rápida retrospectiva da polêmica legal que cercou a liberação dos transgênicos no Brasil. Lembra, em primeiro lugar, que a Medida Provisória (MP) 113, de 26/03/2003, posteriormente convertida na lei 10.688, autorizou apenas a comercialização da safra transgênica já colhida naquele período. O primeiro parágrafo do artigo 1 da referida MP determinava a destruição total das sementes e grãos transgênicos em 31 de janeiro de 2004. Ainda em 2003, o governo federal editou outra MP, a 131 (de 25/09/2003), autorizando o plantio da soja transgênica para os agricultores que haviam cultivado ilegalmente, no anterior, as sementes geneticamente modificadas, contrabandeadas da Argentina. Essa MP também foi convertida em lei, a 10.814, em 15/12/2003.
O artigo 9 dessa lei, avalia o Greenpeace, apontava o grande problema que estava por vir. Ele determina a responsabilidade face aos danos ambientais e à contaminação das lavouras vizinhas que o cultivo de soja transgênica pode causar. Essa responsabilidade, define o artigo em questão, independe da existência de culpa do agricultor, pois os danos são decorrentes do sistema de produção e não da intenção de quem planta. No dia 15 de dezembro de 2003, observa ainda o relatório da entidade, o presidente da República, por meio da Mensagem de Veto 741, inocentou a empresa que criou e disseminou a tecnologia Roundup Ready, de todos os danos que essa tecnologia pode causar. Por outro lado, conservou o artigo 10, que permite a essa empresa (a Monsanto) cobrar os direitos de propriedade intelectual sobre as sementes transgênicas (os famosos royalties).
Quem não plantou transgênico, também paga
Assim, as duas últimas safras brasileiras de soja, contendo transgênicos, foram autorizadas pelo governo federal em caráter especial e por períodos específicos. A safra de 2003/2004, por exemplo, em tese, só pode ser utilizada até dezembro deste ano. Ocorre que a maior parte das sementes utilizadas para plantio de soja transgênica no Brasil, no referido período, foram contrabandeadas da Argentina. Por que o contrabando? Porque o plantio era ilegal, é a resposta óbvia. No Brasil, a produção comercial de produtos contendo transgênicos estava proibida desde 1998. Com a liberação resultante da edição das MPs, a Monsanto, proprietária da patente sobre a soja Roundup Ready, fez um acordo com cooperativas e comerciantes de soja e criou um sistema de cobrança para a colheita de 2004, realizando um teste que identifica a presença de grãos transgênicos.
Antes de a soja ser armazenada nos silos, o produtor deve declarar que tipo de soja cultivou. Se declara que a soja é não-transgênica, precisa provar isso com uma análise específica. Esse teste identifica a presença de grãos transgênicos, mas não identifica a porcentagem destes grãos no lote. O valor cobrado pela Monsanto, em 2004, é de R$ 0,60 por saca de 60 kg para os agricultores que declararam o uso das sementes transgênicas e não realizaram o teste. Já o agricultor que declarou que sua soja não era transgênica, mas teve a presença de grãos transgênicos detectada no teste, foi obrigado a pagar R$ 1,50 por saca de 60 kg, além dos custos necessários para a realização do teste. Ou seja, o agricultor que preferiu plantar soja convencional e teve sua lavoura contaminada, está pagando mais royalties a Monsanto do que aqueles que optaram pelas sementes modificadas.
Aí está um dos problemas principais denunciados pelo Greenpeace: “a empresa criou um sistema que permite a cobrança do direito de patente mesmo sobre as sementes convencionais, prejudicando o agricultor cuja lavoura convencional foi contaminada”. Outro problema adiciona, acrescenta o documento: “se o agricultor pulverizar sua lavoura com glifosato (nas folhas da soja e na quantidade que o plantio transgênico requer), todas as plantas convencionais morrerão, restando apenas a soja transgênica. O agricultor que usa a tecnologia Roundup Ready produz 100% de soja transgênica, pois não existe a possibilidade de sobrevivência de plantas convencionais na lavoura”.
As formas de contaminação
Segundo o documento do Greenpeace – composto de um relatório e de um vídeo com depoimentos de produtores –, a contaminação pode acontecer por via sexual ou mecânica. No primeiro caso, ocorre a troca de pólen entre plantas diferentes, separadas por uma certa distância. Já a contaminação mecânica é a mistura das sementes convencionais e transgênicas ao longo de toda a cadeia produtiva. Isso pode ocorrer no uso das máquinas de cultivar, plantar e colher a semente, nos caminhões utilizados para o transporte do produto e nos silos de armazenamento. A contaminação transgênica das lavouras convencionais impedem os produtores de vender sua produção como soja convencional para as cooperativas, acarretando prejuízos financeiros. Um exemplo disso é o que ocorre na Cotrimaio, cooperativa localizada no município de Três de Maio, que possui uma cotação diferenciada para soja não-transgênica desde 2001, pagando mais por essa variedade.
Outro custo adicional é provocado pela necessidade de adotar medidas para evitar a contaminação, como a limpeza do maquinário e a separação entre sementes transgênicas e não-transgênicas para a comercialização da safra. Além disso, os produtores que optaram plantar soja não-transgênica são obrigados a pagar royalties se a safra não é separada ou se ocorrem erros nos testes para detectar a presença de sementes geneticamente modificadas. A agricultora Ângela Marlene Tavares Azevedo relatou como foi afetada por esses prejuízos. “Quando fui entregar minha safra de soja convencional, o teste indicou que era transgênica. Mas não aceitei pagar os royalties. Acionei a Secretaria da Agricultura para exigir um novo teste, que comprovou que minha soja não era transgênica”, relatou. Ela teve que arcar com os custos desses exames.
Patrimônio genético em risco
Assim, prossegue o documento do Greenpeace, os produtores de soja convencional estão sendo prejudicados em vários aspectos. “Os resultados deste processo invisível são a impossibilidade de o agricultor vender sua produção como soja convencional e, portanto, a preços melhores; a sua obrigatoriedade de pagar direitos de propriedade intelectual por uma tecnologia que não usou; a contaminação de seus campos e a perda de seu valioso patrimônio genético, a semente que cultiva”. Prevenir esses riscos gera custos adicionais para o produtor e para toda a cadeia produtiva. “Já os lucros da empresa dona dos direitos de propriedade intelectual são protegidos por lei”, conclui o relatório da entidade. Resumo da obra, segundo o Greenpeace: aqueles agricultores que atuaram dentro da lei e não se deixaram seduzir pela prática do contrabando e do plantio ilegal de soja transgênica, estão pagando o pato.
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