“A gente não vai deixar de sorrir, a gente não vai deixar de ter esperança”, disse o ator Paulo Gustavo no fim de 2020, alguns meses antes de falecer em decorrência da Covid 19. Dois anos depois, a lei que tem o nome do comediante traz esperança aos artistas e produtores culturais, impactados pela pandemia. Muitos deles se reuniram na tarde desta quarta-feira (10) no plenário da Assembleia Legislativa de Mato Grosso do Sul (ALEMS) em audiência pública, proposta pela deputada Gleice Jane (PT) e pelo deputado Pedro Kemp (PT) em parceria com o Fórum Estadual de Cultura, para debater a implementação da lei, com atenção à transparência, à desburocratização, ao controle social e à democratização do acesso aos recursos.
A Lei Paulo Gustavo (Lei Complementar 195/2022) determina que a União repasse aos estados, Distrito Federal e municípios o montante de R$ 3,86 bilhões para aplicação em ações que visem a mitigar os efeitos da pandemia da Covid 19 sobre o setor cultural. Desse total, Mato Grosso do Sul deve receber R$ 52 milhões. A discussão sobre as características dos editais que vão beneficiar projetos culturais do Estado e prefeituras foi a pauta do encontro. De modo geral, os participantes defenderam a necessidade de contemplar artistas indígenas, negros, mulheres, de municípios do interior, entre outros grupos.
O deputado Pedro Kemp elencou alguns pontos de exigência, reforçados por outros participantes, quanto ao acesso e uso do montante. “Queremos que esse recurso possa atender a todas e todos que trabalham com cultura, que fazem a cultura acontecer. É importante que essa lei tenha atenção à diversidade, que possa contemplar comunidades tradicionais, quilombolas, indígenas, mulheres, homens, não deixando ninguém de fora. Também temos que diminuir ao máximo a burocracia para o acesso a esse recurso e que isso seja feito com transparência”, afirmou o parlamentar.
A importância da cultura na vida humana foi destacada pela deputada Gleice Jane. “Nesses últimos anos, a cultura tem sido muito prejudicada, tem sido alvo de um discurso de ódio. Em todas as sociedades, a arte é eminente à existência humana. E quando a política se coloca contra a cultura, contra a criação, compromete a nossa existência”, discursou a parlamentar. “Para quem vive da cultura, a pandemia trouxe muitas dificuldades. Agora a gente começa a ter um respiro. É um momento importante de resgate da importância da cultura”, acrescentou.
A necessidade de desburocratização foi reforçada pelo secretário de Estado de Turismo, Esporte, Cultura e Cidadania (SETESCC), Marcelo Ferreira Miranda. No entanto, ele chamou à atenção para a fiscalização e controle social. “A gente precisa democratizar o acesso ao recurso, contemplando os povos tradicionais, quilombolas, pessoas com deficiência… Mas precisamos utilizar de forma correta. A desburocratização é importante, mas com controle social que garanta a lisura no uso desse recurso”, afirmou.
Representando o Comitê Paulo Gustavo em Mato Grosso do Sul, o ator Fernando Cruz, do Teatro Imaginário Maracangalha, destacou a relevância do momento e o papel mobilizador dos artistas. “Para nós, este é um momento histórico. Essa lei existe por causa da mobilização dos artistas. Lembrando que a lei passa a compor o Sistema Nacional de Cultura [SNC], mais uma construção que devemos nos empenhar como trabalhadores da cultura”, afirmou. “A importância de estarmos aqui na Assembleia Legislativa tem a ver com a exigência da própria lei, que prevê as escutas, as oitivas para ouvir a sociedade. Então, é uma lei construída não de cima para baixo, mas de baixo para cima”, destacou o artista.
A audiência, como espaço de escuta, conforme frisado por Fernando Cruz, possibilitou que diversas pessoas, representando vários segmentos sociais, fizessem uso da palavra. Artistas e outros trabalhadores da cultura, que estiveram no plenário especial e na plenária, comentaram avanços e pontos de atenção da lei e levantaram questionamentos. Os integrantes da mesa de autoridades falaram sobre aspectos da lei e discutiram as dúvidas.
Além dos deputados Pedro Kemp e Gleice Jane, do secretário Marcelo Ferreira e do artista Fernando Cruz, a mesa foi composta por Caroline Garcia, representante da coordenação do Fórum Estadual de Cultura, pelo procurador do Estado, João Claudio dos Santos, representando a Procuradoria Geral do Estado, e pela procuradora chefe da Fundação de Cultura do Estado, Valquíria Duarte da Silva.
“O lindo do mundo é quantos mundos há dentro dele”
Com poesia brotada no tekoha que nela habita, Aline Oliveira de Souza Silva falou em nome dos povos indígenas de Mato Grosso do Sul. Ela foi uma das várias pessoas que ocuparam a tribuna. “A cultura faz parte de nossa cosmologia”, disse Aline após saudar a todos em seu idioma. E seguiu com sua fala de resistência e beleza poética. “Costumo dizer que o lindo do mundo é quantos mundos há dentro dele. Cada povo tem sua cultura. E nós, povos indígenas, sabemos que muito da cultura do Brasil vem do nosso povo. E esse povo fica à margem da sociedade brasileira. Nosso lugar não é só dentro da aldeia. Estamos sempre transitando em todos os espaços e precisamos de apoio para isso, para contribuir com este país. Não há democracia sem os indígenas. Estávamos aqui há muito tempo, antes da invasação, e continuamos aqui, resistindo aos inúmeros ataques”, discursou.
Aline também contou que, nesse trânsito em vários espaços, nesse passeio por várias culturas, os jovens de sua aldeia formaram um grupo de hip hop, o Brô MC’s. “É o primeiro grupo de hip hop dentro da aldeia onde moro [em Dourados]. Temos também companheiros de outros tekohas, palavra que quer dizer ‘território sagrado’; esses companheiros estão transitando na área do cinema, do teatro…”, informou. “Mas a burocracia nos deixa fora de todos os editais que vêm para apoiar a cultura”, reclamou. E finalizou dizendo que era importante falar na audiência, porque os indígenas têm sua própria voz: “A gente tem ocupado os espaços das universidades, da arte, da cultura, porque nós precisamos falar por nós. Chega de não indígenas falando pela gente. Por isso estamos ocupando espaços para falarmos por nós. E dentro de nossas tekohas, nossas comunidades esperam muito de nós que estamos aqui, que estamos ocupando esses espaços”.
Regulamentação e próximos passos
A Lei Complementar 195/2022 será regulamentada no dia 12, próxima sexta-feira, durante evento em Salvador (BA). Depois disso, há um prazo de 60 dias para apresentação dos projetos. Os editais serão publicados pela Fundação de Cultura do Estado. No dia 25 deste mês, está marcada reunião em Campo Grande com representantes do Ministério da Cultura para discutir o assunto.
Da audiência, ficou definida a necessidade de capacitação e assessoramento às prefeituras, às comunidades tradicionais e quilombolas. Também ficou acordado que os editais se caracterizem pela democratização do acesso ao recurso, com atenção aos povos indígenas, comunidades quilombolas, mulheres e outros grupos que historicamente ficam às margens de benefícios com esse.
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