Cientistas decidem sobre pesquisas com organismos geneticamente modificados, e Saúde e Meio Ambiente ficam com a prerrogativa para exigir licenciamento ambiental e liberar transgênicos.
Nelson Breve – 5/2/2004
Brasília – Após dois dias de intensas discussões, o projeto que altera a Lei de Biossegurança foi aprovado na Câmara na madrugada desta quinta (5). A versão final, que será apreciada agora pelo Senado, agradou mais os ambientalistas que os ruralistas. O relator, Renildo Calheiros (PCdoB-PE), fez modificações que acabaram acomodando as forças internas do governo que se confrontaram até a manhã desta quarta (4), quando o presidente Luiz Inácio Lula da Silva finalmente indicou o ponto de convergência entre o necessário e o possível.
A Comissão Técnica Nacional de Biossegurança (CTNBio), integrada por cientistas, terá plenos poderes para deliberar sobre pesquisas com organismos geneticamente modificados (OGM). Os ministérios da Saúde e do Meio Ambiente ficam com a prerrogativa para exigir licenciamento ambiental e liberar a produção e comercialização de transgênicos. Mas terão prazo para se pronunciar e caberá recurso da decisão ao Conselho Nacional de Biossegurança (CNBS), integrado por 15 ministros.
Não foi fácil chegar à conciliação. De um lado estava a ministra do Meio Ambiente, Marina Silva, que aparenta fragilidade, mas é firme e determinada nos princípios. De outro, o ministro da Agricultura, Roberto Rodrigues, que conquistou o presidente Luiz Inácio Lula da Silva com habilidade e competência comprovadas com o sucesso do agronegócio no ano passado. No centro, o ministro comunista da Coordenação Política, Aldo Rebelo, defensor da liberdade para a pesquisa científica e do fim do poder de veto do Ibama na liberação de transgênicos.
O desafio do relator era encontrar um ponto de equilíbrio em que nenhum dos três saísse do embate totalmente derrotado ou completamente vitorioso. Ajeitado até no último minuto da discussão em plenário, o texto dá margem a mais de uma interpretação. A redação do artigo 40, por exemplo, deixa dúvidas sobre de quem será a responsabilidade pela definição do que é potencialmente causador de degradação do meio ambiente. O projeto original do governo dava essa prerrogativa ao MMA, enquanto o relatório preliminar feito por Aldo antes de ser nomeado ministro passava para a CTNBio. A nova redação retira da lei que trata da Política Nacional de Meio Ambiente qualquer referência aos dois órgãos e sequer menciona explicitamente espécies transgênicas.
Sem grandes derrotados
Politicamente, Marina conseguiu uma meia vitória, Rodrigues, uma meia derrota, e Aldo, um empate. O Meio Ambiente resgatou a prerrogativa de deliberar sobre a produção e comercialização de transgênicos, aumentando a margem de segurança na liberação de OGMs. A Coordenação Política aprovou um projeto de interesse do governo, de difícil negociação, que deixa a liberação de pesquisas totalmente com os cientistas e acaba com o poder de veto do MMA. Rodrigues não conseguiu facilitar totalmente a liberação dos transgênicos, mas prorrogou por mais uma safra a dispensa dos procedimentos preventivos para o plantio da soja geneticamente modificada, que terminaria no fim deste ano.
Para chegar a esse ponto, o caminho foi longo. Principalmente porque os deputados tinham dúvidas sobre o que realmente era do interesse do governo, pois o projeto original divergia muito do que foi apresentado por Aldo, então líder do governo na Câmara. O primeiro agradava muito aos ambientalistas, dando poder máximo ao MMA. O segundo, alegrava muito os ruralistas, pois transferia o poder à CTNBio. Porém dava margem a longas demandas judiciais, que atrasariam ainda mais uma regulamentação definitiva sobre o assunto, que vem se arrastando há oito anos.
Os dois lados têm um longo histórico de confrontos no Congresso e preconceitos recíprocos. Os ambientalistas acham que os ruralistas só pensam no aumento da produtividade, sem levar em conta as conseqüências para o meio ambiente. Os ruralistas acham que os ambientalistas são ignorantes porque não querem o desenvolvimento.
Por isso, um lado não quer deixar o poder com o órgão que consideram aliado do outro. Ruralistas sustentam que o Ibama impede as pesquisas porque tem ecologistas de ONGs financiadas por multinacionais interessadas em atrasar o desenvolvimento tecnológico do país ou vender mais agrotóxicos, pois a soja geneticamente modificada demandaria menos veneno. Ambientalistas acusam
cientistas da CTNBio que defendem os transgênicos de estar sendo financiados por multinacionais interessadas na liberação.
Apoio dos religiosos
As duas bancadas são barulhentas e provocam desgastes ao governo, mas os ambientalistas são menos numerosos que os ruralistas. Para compensar essa desvantagem, foram se socorrer com a bancada religiosa. Colocaram os deputados católicos e evangélicos contra o parecer de Aldo que permitia pesquisa de clonagem com embriões humanos. A mudança na correlação de forças foi decisiva para que Renildo puxasse o parecer para o lado dos ambientalistas.
A negociação com a ministra Marina, na residência oficial do presidente da Câmara, João Paulo Cunha (PT-SP), avançou pela madrugada de quarta (4), e continuou por todo o dia seguinte. As reuniões da Comissão Especial que analisava o assunto foram adiadas e depois canceladas. Com um novo parecer, contrário aos interesses dos ruralistas, que dominavam dois terços da Comissão, o governo certamente perderia a votação, tornando difícil qualquer entendimento posterior.
No início da noite, Aldo Rebelo foi pessoalmente ao Congresso arrematar a negociação. Mostrou claramente que o projeto do governo passara a ser o parecer de Renildo. Ou seja: o presidente Lula definira, enfim, como a base do governo deveria votar. Os líderes foram devidamente informados e os ruralistas logo acusaram a derrota. “A burocracia do Ibama venceu o Brasil”, protestou Darcísio Perondi (PMDB-RS). “A primeira vez que eu gosto de um comunista, e eles pegam e detonam o meu comunista”, resmungou Abelardo Lupion (PFL-PR), referindo-se ao parecer anterior de Aldo.
Pouco depois, quem chegou ao Congresso foi o ministro da Agricultura. Destacado por Lula para acalmar os ruralistas, chegou sem gravata e com cara de poucos amigos. Cumpriu a ordem do chefe contrariado. Defendeu o parecer de Renildo mostrando o avanço na prorrogação da liberação da produção e comercialização da soja transgênica por mais um ano. Era o gesto de que precisavam os líderes dos partidos governistas que mais concentram ruralistas. Foi o argumento para confinar a bancada ruralista ao próprio tamanho – menos de um quarto da bancada governista.
Só uma votação nominal
Para marcar posição, os ruralistas fizeram aliança com os partidos de oposição, que enxergaram a oportunidade de enfiar uma cunha na fratura da base de sustentação parlamentar do governo, e com o PPS, do senador Roberto Freire (PE), autor de uma emenda que restabeleceria o parecer de Aldo. A votação do requerimento que dava preferência à votação dessa emenda em detrimento do parecer do relator foi o grande teste do governo e a única decisão por voto nominal: 128 apoiaram Freire, 279 ficaram com o governo e dois se abstiverem. As demais votações foram simbólicas porque a oposição e os ruralistas desistiram de esticar a sessão, retirando emendas e destaques da pauta. E os governistas foram comemorar a vitória comendo uma peixada na casa do deputado Paulo Rocha (PT-PA).
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