Em 4 de junho, professora Leia Aquino, de Antônio João, foi vítima de AVC, e hoje, após duas semanas, o povo terena perde Dona Enir, na Capital
O Mandato Participativo Pedro Kemp lamenta mais uma perda entre as lideranças mulheres indígenas em MS. Veja um pouco da história de cada uma dessas guerreiras:
Faleceu na Santa Casa, nesta terça-feira (21), a índia terena Enir Bezerra, com 61 anos. Vítima de complicações cardíacas, ela foi a primeira mulher eleita cacique em Mato Grosso do Sul, no ano de 2008. Enir é uma das fundadoras da primeira aldeia urbana do País, a Marçal de Souza, em Campo Grande. O velório acontece dentro da comunidade e o sepultamento…
Nos anos 80 e 90 ela travou verdadeira batalha com o poder público municipal para conseguir o loteamento na região do Tiradentes e lá, ser construída a aldeia urbana Marçal de Souza. O local, que conserva algumas características indígenas como a oca, abriga famílias das etnias guarani, kadiwéu, ofayé, xavante e terena. Os indígenas vieram principalmente dos municípios de Miranda, Aquidauana e Sidrolândia.
A área ocupada pelos índios – cerca de cinco hectares – foi conquistada depois de muita luta, relatava Dona Enir. O espaço foi doado em 25 de janeiro de 1973 pelo então prefeito Antônio Mendes Canale paraFundação Nacional do Índio (Funai). Mas, a área só foi ocupada pelos índios em 1995. Após muita pressão da comunidade, liderada por dona Enir, a prefeitura inaugurou 163 casas de alvenaria. O prefeito à época era André Puccinelli.
Mãe de sete filhos, Dona Enir também esteve a frente para a construção da escola bilíngüe Sulivan Silvestre de Oliveira ou Tumune Kalivono (Crianças do Futuro) e do Memorial da Cultura dentro da aldeia.
Enir Bezerra ficou conhecida por ser uma das mulheres mais atuantes em defesa dos direitos dos povos terenas. Foi candidata ao cargo de vereadora e tornou-se conhecida pela participação política nas eleições, conquistando respeito.
Enir Bezerra da Silva nasceu na aldeia Limão Verde, em Aquidauana. Criança, a pequena Enir era colocada de pé em uma cadeira para ensinar os colegas a rezar. Aos 8 anos, veio com a família para a Capital.
Unir seu povo para reconstruir uma identidade e conquistar direitos e dignidade foi a principal missão de Enir. Em entrevistas ela sempre dizia que acreditava no encorajamento das mulheres da aldeia. “A minha participação como cacique fez as mulheres se sentirem mais fortes”, dizia afirmando que a força do povo indígena traria ainda muitas mudanças. Dona Enir também afirmava que o poder público ainda precisa enxergar o índio como um indivíduo que, independente do lugar onde esteja, deve ter seus direitos preservados. “Já contribui com pequena parcela pela questão indígena. Hoje tenho orgulho de ver a minha comunidade organizada, cada um mantendo a sua própria casa”, disse ela em uma de suas entrevistas.
ADEUS
Em 4 de junho, morreu vítima de problema cardíaco a liderança Guarani Kaiowá Léia Aquino, 48. Léia foi uma das lideranças mais importantes na denúncia das violências cometidas contra os Kaiowá e Guarani. Em agosto de 2015, liderou os indígenas que ocuparam parte do tekoha Ñanderu Marangatu, no município de Antônio João, onde foi assassinado Simião Vilhalva.
Léia era mãe, professora e uma das principais lideranças da Aty Guasu Guarani e Kaiowá ao longo de toda primeira década do século 21. Foi porta-voz de um sem-número de denúncias de assassinato, ataques de pistoleiros, estupros, casos de racismo, incêndios criminosos, despejos, invasões e outras violências contra os indígenas, envolvendo fazendeiros, policiais e governos. Nos últimos anos, dedicou-se também à luta pelo direito à educação dos Guarani e Kaiowá.
No dia 3, Léia se sentiu mal enquanto dava aulas na aldeia, e foi encaminhada para o Hospital da Vida, em Dourados, mas não resistiu. Seu corpo foi levado de volta à aldeia, e foi enterrado debaixo de um pé de mexerica, na área da retomada da fazenda Primavera, ocupada pelos indígenas no ano passado. Nesta terça, Léia iria à Brasília com um grupo de cinco indígenas de sua aldeia para apresentar demandas de demarcação e de educação.
Luta
Léia fez parte da Convenção dos Direitos Indígenas do Mato Grosso do Sul, e foi uma das fundadoras do Conselho Continental da Nação Guarani (CCNAGUA), criado em 2010. Também era missionária evangélica.
“Uma mulher forte, corajosa, guerreira, que enfrentou a ira dos fazendeiros”, comenta a também professora indígena e mestre em educação, Teodora de Souza. “Léia foi ameaçada, mas nunca abandonou seu povo. Ela não apenas falava – estava junto nas retomadas passando calor, frio, vivendo na pele toda dor vivida pelos Guarani e Kaiowá”.
Acompanhada de Marcos Veron, Leia participou no ano 2000 de um encontro na Irlanda, com governo e ONGs do país, para denunciar a situação de vida dos indígenas no estado. “Não temos a liberdade que precisamos para ter nossa própria educação, nossas próprias escolas (…); tudo o que precisamos parar viver em comunidade. “Nós não queremos ser dependentes”, disse ela na ocasião.
Em 2004, junto do também falecido Amilton Lopes, e de Loretito Vilharva, liderou a primeira retomada de Ñanderu Marangatu, e foi peça-chave na homologação do território tradicional – conquista suspensa monocraticamente pelo ministro Nelson Jobim, do Supremo Tribunal Federal (STF) em março de 2005. No mesmo ano, denunciou uma série de ataques que culminou no despejo dos indígenas da área, e na morte de Dorvalino Rocha. As investigações sobre a morte nunca foram concluídas; e também o processo no Supremo, nas mãos do ministro Gilmar Mendes, espera ser julgado há 11 anos.
“Duas semanas após a expulsão e acampamento na beira da estrada, Léia me liga novamente, e com tom de sofrimento grita no telefone ‘mataram uma liderança. Atiraram e mataram Dorvalino'”, escreveu o missionário Egon Heck, em uma crônica sobre o falecimento da indígena.
Era da inspiração de Léia que surgiram os memoráveis cartazes escritos a mão pelas crianças – seus estudantes na escola -, decorando a resistência dos indígenas contra o despejo. “Com os alunos e professores fizeram uma série de cartazes e faixas que no outro dia, iriam estar presentes na estrada da resistência, aguardando a polícia, com seu pelotão de choque para enfrentar um povo apenas armado com a esperança e secular resistência. E Léia lá estava com seus alunos e colegas testemunhando a covardia da expulsão, ameaças, vôos rasantes de helicóptero, casas queimadas”, relatou.
Texto: Jacqueline Lopes – Mandato Participativo Pedro Kemp – DRT-078/MS
e Ruy Sposati – CIMI
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