Tudo parecia caminhar para um consenso, até os interesses comerciais se imporem. Em abril passado, após uma audiência pública convocada pela Procuradoria dos Direitos do Cidadão em São Paulo, entidades do movimento feminista e emissoras de televisão aceitaram abrir um diálogo para debater as formas de representação da mulher na mídia. A audiência foi resultado de uma representação entregue pelas entidades ao Ministério Público Federal (MPF) solicitando direito de resposta nas TVs. De acordo com as organizações, além de muitos perfis de mulher serem invisíveis à mídia, aquele que é reforçado as retrata de forma estereotipada. Teve início então uma série de encontros das entidades com cada uma das emissoras, para discutir sua grade de programação. Participaram desta rodada Bandeirantes, Gazeta, Globo, MTV, Cultura, Record, SBT e Rede TV!
Na última quinta-feira (14), todas se reuniram no MPF em São Paulo para um acordo extra-judicial, mediado pela procuradoria. As organizações feministas abriram mão do direito de resposta solicitado inicialmente e apresentaram às emissoras uma proposta alternativa, baseada no seguinte tripé:
– um calendário de cobertura de pautas e campanhas institucionais, que dessem visibilidade a datas e temas importantes para as mulheres, como a questão da violência doméstica, da desigualdade de gênero no trabalho e da mortalidade materna.
– um ou dois programas para discutir um tema de interesse mútuo às organizações e emissoras
– uma mesa de diálogo permanente, que já havia sido proposta na audiência pública, de forma que as organizações pudessem contribuir constantemente no debate sobre a representação da mulher na TV. A mesa também seria um espaço de retorno para as emissoras de como a sociedade recebia sua programação.
“Percebemos que uma semana de direito de resposta, de certa forma, assustava as emissoras; isso interromperia sua programação de forma brusca. Então, para atingir o objetivo de resgatar a auto-estima da mulher e de fazê-la se sentir representada da melhor forma, fizemos uma proposta para compatibilizar a programação de cada emissora, seu público, e nossa reivindicação”, explicou a psicóloga Raquel Moreno, do Observatório da Mulher, uma das entidades envolvidas no processo. Segundo ela, durante as reuniões, muitas emissoras se mostraram aberta a esta proposta.
No momento de selar o acordo diante do Ministério Público Federal, no entanto, as emissoras recuaram. Representadas pela Abert (Associação Brasileira de Emissoras e Rádio e Televisão) e pela Abra (Associação Brasileira de Radiodifusores) elas afirmaram que não aceitam nenhuma “interferência externa” na organização da sua programação. Falando em nome da Bandeirantes e da Rede TV!, o assessor da Abra disse que a prerrogativa da organização da programação é das emissoras.
“O diálogo com a sociedade civil é fundamental e tem que ser estimulado. Mas ninguém pode interferir no que as emissoras desejam. Por isso elas não vêem como acatar um direito de resposta ou qualquer monitoramento da programação”, explicou Walter Vieira Ceneviva.
Rodolfo Machado, assessor da Abert – que na ocasião representava a Globo, o SBT, Gazeta, Rede Mulher, Rede Vida, Record e Grupo Abril –, também disse que as emissoras não acatariam nenhum dos pedidos. “Queremos manter o diálogo com a sociedade civil, mas sem passar pelo Ministério Público. Nos sentimos sobre a mira de algo que querem nos impor que temos condições de acatar sem um procedimento administrativo”, disse.
A posição das associações foi corroborada individualmente por cada uma das emissoras. “A Globo já tem um canal de comunicação com o telespectador para receber sugestões e trabalhar de forma voluntária com a programação. Sempre estivemos abertos, mas vamos receber e utilizar ou não sugestões de acordo com o interesse da Globo”, disse Juliana Martins. “Não pretendemos assinar nenhum documento que nos obrigue a fazer alguma coisa. Os conteúdos são relevantes, temos apreço em receber o material. Mas tudo será analisado no aspecto do interesse da emissora e nunca de forma compulsória”, concordou Marinês Rodrigues, superintendente de programação da Gazeta. “Estão usando o MP para intimidar as emissoras. Não aceitamos ingerência e fiscalização constante, como se isso fosse Cuba ou Venezuela”, retrucou Alexandre Barros, da Bandeirantes.
Concessões públicas
De acordo com a Procuradoria dos Direitos do Cidadão, a idéia não é promover ingerência alguma na programação das emissoras, que são concessões públicas, mas chegar a um ponto comum de interesses. “A Constituição Federal veda qualquer forma de preconceito contra a mulher. Sabemos que na TV há vários grupos estigmatizados. Buscamos aqui um acordo que valorize imagem da mulher na televisão”, explicou a procuradora Adriana Fernandes.
“Buscamos um espaço de compatibilização. Se um movimento procura o Ministério Público é porque não está se sentindo representado. As mulheres adaptaram ao máximo seu pedido; agora estamos vendo como conciliar interesses. Se o discurso do diálogo se concretizasse na prática, não precisaríamos estar aqui. Já sabemos o que as emissoras fazem em termos de programação. A idéia agora é fazer mais, levando em conta o interesse das organizações da sociedade civil”, completou a procuradora Inês Virgínia.
A MTV foi mais flexível, e se dispôs a realizar campanhas de interesse das mulheres e programas que discutissem assuntos importantes para a igualdade de gênero. A emissora já trabalha da mesma forma em parceria com organizações de defesa dos direitos da criança e do adolescente. No entanto, também se recusou a assinar qualquer documento que estabelecesse como esta parceria pode ser estabelecida. A TV Cultura acaba de trocar sua direção e se comprometeu a realizar uma reunião em agosto com as entidades para discutir como melhor contemplar a questão feminina em sua programação.
Na opinião das entidades feministas, há um receio das emissoras em se abrir um precedente deste tipo. Outros movimentos se sentiriam, com razão, legitimados a procurar o Ministério Público para reivindicar outra forma de representação nos meios de comunicação. Como não houve acordo de início, a Procuradoria dos Direitos do Cidadão se reunirá separadamente com cada uma das partes. Ao término da reunião, as organizações decidiram apresentar uma nova proposta: a sugestão de quatro temas para campanhas e de dois temas para programas, que ficariam à escolha das emissoras. Seria necessário, no entanto, que elas assumissem o compromisso de veiculá-los.
“Isso é o mínimo que elas podem fazer. Quando nos reunimos, acreditamos na boa vontade demonstrada. Mas hoje vimos a prova de que as emissoras não estão realmente abertas. Nos sentimos desrespeitadas. Fizeram ao vivo o que fazem conosco diariamente na televisão. Isso só mostra que nossa reivindicação é legítima e que seguiremos lutando por isso”, concluiu a jornalista Terezinha Vicente Ferreira, da Marcha Mundial das Mulheres.
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