Assim como o grupo de 1,5 mil pessoas que protestava 12 anos atrás pelo direito à terra e acabou sendo atacado por policiais militares no Massacre de Eldorado de Carajás, milhares de integrantes do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) saíram às ruas e promoveram atos em diversas cidades de 16 estados do país na semana passada.
Segundo José Batista de Oliveira, membro da coordenação nacional do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), as mobilizações da Jornada Nacional de Lutas por Reforma Agrária neste mês de abril não são apenas atos para relembrar o trágico episódio que resultou em 19 mortos e 69 feridos – sem olvidar o fato de que nenhum dos responsáveis pelo crime está na cadeia. “É uma forma de continuar questionando e pressionando contra as causas dos problemas que geram a violência”.
“Não estamos apenas protestando. Estamos apontando saídas”, coloca José Batista. “Temos uma proposta concreta diante da crise do aumento do preço dos alimentos. São 150 famílias acampadas que querem terra para produzir”, coloca o integrante da coordenação do movimento.
Para ele, o pagamento de indenizações de cerca de R$ 1,4 milhão a 20 sobreviventes e parentes de vítimas do Massacre de Eldorado dos Carajás, anunciado pelo governo do Estado do Pará no último dia 17, é apenas o “mínimo” que deveria ser garantido. “A solução duradoura é a reforma agrária. Defendemos outro modelo para o campo brasileiro, com base na produção de alimentos e na proteção ao meio ambiente”.
O “outro modelo” presente no discurso de José Batista é um contraponto ao modelo predominante “apoiado pelo governo federal”, de acordo com suas palavras. “O agronegócio com participação ativa de grandes empresas concentra terra, aguça conflitos, resulta em graves impactos ambientais e ainda afeta a soberania nacional, pois estimula a compra de terras por estrangeiros. Ou seja, os problemas tendem apenas a se agravar”.
Embora ignorada na cobertura midiática das manifestações do “abril vermelho” do MST que deu amplo destaque às ações contra a mineradora Vale e à ocupação da Usina Hidrelétrica de Xingó (no estado de Sergipe), essa tendência vem despertando a atenção de entidades ligadas à Organização das Nações Unidas (ONU), que emitiram sinais contundentes de alerta.
Apresentado em Joanesburgo, na África do Sul, na última quinta-feira (15), as conclusões do Relatório Internacional sobre Ciência e Tecnologia Agrícolas para o Desenvolvimento (IAASTD, na sigla em inglês), uma espécie de IPCC (Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas, sigla em inglês) da agricultura, ressalta a necessidade de mudanças no setor agrícola mundial. Amparada por agências da Organização das Nações Unidas (ONU) como o Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (Pnuma) e a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco), o IAASTD envolveu 400 especialistas que pesquisaram o tema desde 2005.
Na coletiva de apresentação do trabalho, o professor e diretor do IAASTD, Bob Watson, sublinhou o fato de que, a despeito do impressionante aumento de produtividade proporcionada pela “Revolução Verde”, mais de 800 milhões de pessoas continuam passando fome no mundo. Segundo o estudioso, a busca pelo incremento da produtividade na agricultura se colocou para o mundo nos anos 60, diante do cenário de escassez pós-II Guerra Mundial. Hoje, porém, a agricultura precisa incorporar de vez o seu papel multifuncional.
Em suma, o documento aponta inúmeros impactos sociais e ambientais da agricultura (desde a falta de garantia de alimentação básica e acesso à água potável até a desertificação, o aquecimento global e a perda de biodiversidade) relacionados ao modelo atual e pede que a produtividade não seja mantida na posição de prevalência em comparação à sustentabilidade.
Bob Watson ainda levantou a necessidade de unir sabedorias locais e tradicionais aos conhecimentos científicos e tecnológicos existentes, com aplicação de investimentos públicos e privados, no sentido de projetar um mundo menos desigual daqui a 50 anos. Frisou ainda que é preciso muito cuidado com relação ao cultivo de transgênicos, à opção pelos agrocombustíveis e até à abertura de mercado (com a redução dos subsídios) – que, segundo os cientistas, pode ser boa para escoar a produção de pequenos produtores de países pobres, mas exige análises mais detalhadas acerca de seus possíveis resultados. O trabalho do IAASTD foi referendado por 54 países; apenas o Canadá, a Austrália, o Reino Unido e os Estados Unidos se recusaram a firmar o relatório conclusivo.
Em outro flanco, o diretor-geral da Organização das Nações Unidas para a Agricultura e a Alimentação (FAO), Jacques Diouf publicou um artigo pregando mudanças que vão no mesmo sentido na edição de 13 de abril da Folha de S. Paulo, por ocasião da 30ª Conferência Regional da FAO para a América Latina e o Caribe, realizada semana passada em Brasília. Argumenta o diretor-geral da FAO: “A agricultura e a segurança alimentar mundial enfrentam desafios que vão do crescimento populacional ao aquecimento global. Em grande medida, nosso futuro será moldado por nossas reações. Precisamos responder com estratégias sustentáveis que considerem as necessidades dos mais vulneráveis e a segurança alimentar”.
As políticas agrícolas e de segurança alimentar precisam ser revistas, na visão de Jacques Diouf, para responder a desafios como a redução das áreas florestais, a intensificação dos efeitos da mudança climática e principalmente à alta dos preços dos alimentos. Do total de pessoas que passam fome, 52 milhões vivem na América Latina e Caribe. Um dos objetivos da Conferência de Alto Nível sobre Segurança Alimentar Mundial e os Desafios da Mudança Climática e Bioenergia, que será promovida pela FAO de 3 a 5 de junho de 2008 na cidade de Roma, será justamente trabalhar pelo “estabelecimento de políticas, estratégias e programas que assegurem a agricultura sustentável, o desenvolvimento rural e a segurança alimentar”.
Tanto existe uma proximidade entre as proposições dos movimentos com determinadas resoluções da FAO que um dos pontos do documento final do encontro paralelo à 30ª Conferência Regional da FAO organizado pelo Comitê Internacional de Planejamento das ONGs e OSCIPs para a Soberania Alimentar (CIP) pede justamente a retomada da agenda “esquecida” da Conferência Internacional sobre Reforma Agrária e Desenvolvimento Rural (CIRADR), promovida pela FAO em março de 2006 em Porto Alegre.
A agenda da CIRADR, que foi ameaçada por investidas da União Européia e dos Estados Unidos, foi defendida enfaticamente também pelo ministro Guilherme Cassel (Desenvolvimento Agrário) durante a Conferência Regional da FAO. A CIRADR expressou, segundo o ministro, “apoio a processos participativos baseados nos direitos econômicos, sociais e culturais dos agricultores e agricultoras familiares, indígenas, povos tradicionais, pescadores artesanais e afro-descendentes” e “reconheceu o papel fundamental do Estado em prover oportunidades justas e iguais a todos os cidadãos, por meio de políticas públicas amplas e massivas”. “Esses são os nossos desafios atuais. Por isso, é necessários garantir terra, água e os demais recursos naturais para os milhões de agricultores, campesinos, indígenas, pescadores, comunidades tradicionais, que todos os dias produzem a comida que alimenta a sociedade”.
A resposta à crise dos alimentos, pregou o ministro, em clara divergência com outros setores do governo, “é mais agricultura familiar, mais política pública, mais reforma agrária, mais desenvolvimento rural”. “É necessário afirmar o novo modelo de produção para o século XXI, um modelo agroecológico e socialmente includente. Nesse modelo não há espaço para a monocultura, o latifúndio, o livre mercado e os modelos insustentáveis de produção”.
Curto prazo
As reivindicações mais diretas de curto prazo do MST foram recebidas pelo governo federal com novos compromissos de investimento em desapropriações, na construção de moradias rurais e na facilitação de acesso ao crédito.
O movimento ocupou o edifício-sede da Caixa Econômica Federal em Brasília e saiu de lá com o compromisso do ministro das Cidades, Márcio Fortes, de criação de um novo programa para a habitação rural. De acordo com o próprio ministro das Cidades, dos R$ 160 milhões que foram disponibilizados em 2007 para tal fim, apenas R$ 40 milhões foram efetivamente contratados.
Na reunião com representantes do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) e do Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA), realizada na última sexta-feira (18), o movimento ouviu que o governo está disposto a investir R$ 800 milhões para a construção de casas na área rural e que pretende assentar 100 mil famílias em 2008.
Membros do governo prometeram vistoriar 4,3 milhões de hectares e investir R$ 916,8 milhões na desapropriação de terras improdutivas. De 2003 a 2007, conforme dados do MDA e do Incra, foram assentadas cerca de 450 mil famílias, em mais de 38 milhões de hectares, e criados 2.737 assentamentos.
Os órgãos assumiram ainda a responsabilidade de investir R$ 16,9 milhões para que 1,3 mil projetos de assentamento tenham as licenças ambientais devidamente expedidas. Outros R$ 30 milhões serão destinados ao manejo dos recursos naturais e recuperação dos passivos ambientais que potencialmente podem beneficiar 36,9 mil famílias.
O ouvidor agrário Gercino José da Silva Filho, que tem a função de tratar de temas ligados a conflitos dentro do MDA, destaca ainda a implantação de órgãos específicos – de varas agrárias estaduais e federais a delegacias, defensorias, polícias militares e ouvidorias agrárias – como parte do Plano Nacional de Combate à Violência no Campo. Sublinha ainda a elaboração de um novo Manual de Diretrizes Nacionais para Execução de Mandatos Judiciais de Manutenção e Reintegração de Posse Coletiva, que prevê procedimentos para evitar confrontos violentos e garantir os direitos básicos dos envolvidos.
Fonte Repórter Brasil
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