Em audiência com ONGs, o embaixador brasileiro e secretário geral da Unctad, Rubens Ricupero, afirma estar entre “os que querem mudanças” no sistema econômico global, mas pondera que a política da Unctad é definida pelos países que a compõem.
São Paulo – As declarações do embaixador Rubens Ricupero durante audiência com organizações não-governamentais internacionais na tarde desta sexta feira (11), em São Paulo, podem ser consideradas surpreendentes se levado em conta que quem as fez foi um alto funcionário da ONU, o secretário geral da Conferência das Nações Unidas para Comércio e Desenvolvimento (Unctad). Convidado a ouvir e se pronunciar sobre as demandas do Fórum da Sociedade Civil (FSC), evento organizado por ONGs no marco da reunião ministerial da Unctad, Ricupero foi veemente ao afirmar sua posição crítica ao que chamou de “sistema dominante” e ao defender a participação da sociedade civil no processo de discussão e definição das regras que regulamentam as relações internacionais de comércio e desenvolvimento.
À frente da Unctad há nove anos, Ricupero afirmou que sempre viu os movimentos e organizações sociais como aliadas da Conferência, visto que “ambos querem mudanças do status quo”.
“A Unctad sempre foi a consciência crítica dentro da ONU em relação aos temas comércio, finanças e investimento. Queria citar o pensador italiano Norberto Bobbio, que dizia que as diferenças entre esquerda e direita não desapareceram, apenas se manifestam de forma diferente hoje em dia. De um lado estão os que consideram a injustiça e a pobreza como fatores intrínsecos à natureza e ao sistema, e do outro estão os que não aceitam estas mazelas. Isso é a esquerda. Pessoalmente, me situo entre os que querem mudar a ordem vigente, não sou partidário do sistema dominante”, disse o embaixador, afirmando também que a Unctad sempre se conformou enquanto esquerda das organizações da ONU.
Após soprar a fumaça do cachimbo da paz para os quatro pontos cardeais do FSC, Ricupero ponderou que, independente de seus posicionamentos pessoais, as políticas e os rumos da Unctad todavia são definidos pelas 192 nações membros e seus interesses. Criada em 1964 a partir de um esforço de países da América Latina (capitaneados pelos economistas brasileiro Celso Furtado e argentino Raúl Prebisch), a Unctad foi a primeira instituição das Nações Unidas que incluiu o tema desenvolvimento e combate à pobreza nos debates globais sobre comércio e finanças, fazendo frente à campanha liberalizante e puramente financista do GATT e depois da Organização Mundial do Comércio (OMC). Resultado disso é que as mesmas forças que pressionam o debate global rumo ao livre comércio indiscriminado na OMC – EUA e União Européia – também arregaçaram as mangas no interior da Unctad, pressionando inclusive para que seu papel seja reduzido para órgão de pesquisa e apoio técnico a países pobres.
Neste sentido, Ricupero expressou uma preocupação com a tendência de fortalecimento das ONGs e movimentos sociais em detrimento ou com o concomitante esvaziamento dos espaços político-partidários.
“Me alegro muito com o florescimento das organizações sociais nos últimos tempos, mas isso está ocorrendo como uma alternativa à democracia participativa, aos partidos políticos. Hoje grande parte dos que, há 20 anos, estariam se filiando ao Partido Comunista, à Ação Católica, aos sindicatos, estão aderindo a ONGs por descrença nos partidos. Isso deixa intacto o sistema político, e há o perigo de que as mobilizações sociais acabem se esgotando. Muitos políticos vão ao Fórum Social Mundial porque pega bem, mas na hora de efetuar mudanças, de votar na OMC, adotam as mesmas posições de quatro anos atrás. Os movimentos sociais não podem ser considerados como alternativa à democracia participativa porque não estão dentro do sistema”, alfinetou o embaixador.
Amigo do MST
Partindo do princípio de que são os países que definem as linhas da Unctad, Ricupero apontou alguns problemas que dificilmente serão solucionados se não houver mudanças nas posições dos governos. Para exemplificar, o embaixador usou o calo mais dolorido das organizações sociais e centro dos debates da sociedade civil, a agricultura. Começando pela ineficácia da política de subsídios agrícolas na Europa, que não evitou o desaparecimento de um terço dos pequenos agricultores franceses nos últimos anos, Ricupero também criticou a lógica das apostas no grande agronegócio. “Há que se assegurar a segurança da agricultura familiar, e me pergunto como se pode sobreviver na base do agronegócio. Sou amigo do MST, sempre manifestei meu apoio à reforma agrária, e acho que a questão da agricultura tem que ser colocada como um problema social e político”, afirmou.
Neste sentido, Ricupero vê com preocupação a grande importância que se dá aos processos de negociação macro-econômicos em detrimento do que se coloca como oferta de produtos comercializáveis. A dependência exclusiva de muitos países pobres de uma só commoditie para exportação (grãos, café, cacau, óleo de palma, etc) é um forte fator de vulnerabilidade, solucionável apenas a partir do momento em que se começa a apostar na diversificação e na subordinação das políticas de comércio e finanças ao conceito de desenvolvimento, e na relação do comércio com valores morais.
“A economia é um elemento cultural e não uma criação espontânea da natureza, como querem nos fazer acreditar alguns economistas. Não podemos ser neutros moralmente ao tratar de comércio e economia; eficiência e competitividade não podem ser valores supremos, como defendiam os escravocratas para justificar a escravidão como única forma de desenvolvimento do setor produtivo. Acredito e defendo inclusive que as negociações comerciais têm que ser precedidos de estudo de impacto social, assim como se faz estudos de impacto ambiental para grandes obras”.
Outro calo das organizações sociais, a liberalização financeira, também foi considerado um fator preocupante por Ricupero. Segundo ele, não houve mudança neste campo nos últimos anos, e o sistema adotado globalmente pelas instituições multilaterais não foi capaz de impedir crises agudas como a argentina. Quanto à liberalização financeira, afirma o embaixador, são necessárias muita prudência e cautela, já que não existem mecanismos internacionais de socorro dos países que despencam repentinamente num buraco negro. Sobretudo, há que se tomar cuidado com a entrada de capital especulativo de curto prazo, porque sair do redemoinho criado por este tipo de aplicação “é como pedir demissão da máfia por carta, é penoso demais”.
Ao termino da audiência, Ricupero deixou o FSC conversando animadamente em francês com o bigodudo dirigente da Via Campesina, José Bové, polêmico adversário das indústrias de transgênicos e do Mac Donalds. No entanto, apesar das claras manifestações de apreciação mutua entre ONGs e o secretário geral da Unctad, os primeiros continuam críticos e descrentes de que as opiniões do segundo se reflitam efetivamente nos resultados da reunião ministerial.
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